terça-feira, 24 de agosto de 2010

CRÔNICA: Realidade IV – A fisiologia dos metacarpos

NOTA: Antes de começar a quarta crônica, quero deixar claro, que nem tudo que se passa com o protagonista da série, que sequer tem um nome, tem a ver comigo. Não me preocupo se as pessoas emitirem juízo de valor após lerem os textos, mas espero que saibam que nem tudo tem relação com o autor, no caso, eu.

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Hoje é dia de esquecer a realidade. Hoje é dia de comemorar. Comemorar o quê? Não ter o que fazer, não precisar conversar com ninguém, não ter que atender ao telefone, não levar esporro de patrão mal humorado, e principalmente, por não ser obrigado a fixar os pés fora da cama.

Sábado é dia de viagem astral. Esquecer
que meu time é o último na tabela do campeonato nacional, esquecer que na mesa da sala de estar tem três ou quatro contas pra pagar, e todos os infortúnios que estão me esperando, mas me darei ao luxo de só atende-los na segunda-feira.

Moro só. Posso andar de cueca, ou sem ela. Tenho uma cadeira de balanço maravilhosa, voltada à janela da sala, e me dá uma vista maravilhosa da rua. O que eu consigo ver? Quase nada. Na verdade, vejo alguns postes, fiações, pessoas andando pela rua, e algumas delas podem até me fitar se insistirem muito, mas isso não acontece.

Disse em outras oportunidades que eu costumo passar despercebido, mesmo que eu esteja sentado numa janela, seminu, e fumando um charuto enorme de maconha. Eu não falei que ia viajar? Esse momento é único. Melhor que a masturbação; o processo de auto-conhecimento é rico de belezas, é estreitamente casual, mas oportuno, e lhe propícia o verdadeiro gozo que não vem do suco vital, e não suja o chão, nem as mãos.

Toda vez que eu fico chapado, sem exceções, penso na fisiologia dos metacarpos. Sabe-se que em nós, os homens, é o metacarpo que sustenta a palma da mão. A partir daí, podemos sentir as coisas, apalpá-las, e enfim, segurá-las. Os metacarpos são culpados pela nossa obsessão pela posse.

Mas não é de hoje a minha neurose por eles: desde que fumei meu primeiro baseado, a frase “A FISIOLOGIA DOS METACARPOS” ficam estampadas na minha cabeça, e eu juro por Deus ou por Alá - seja lá qual for seu Deus – que eu não faço a mínima idéia de onde é que veio isso, mas acabei dando à eles, a importância que realmente merecem.

Quando você está em plena viagem, as coisas mais absurdas passam pela sua cabeça, quase nada se relaciona. Já imaginei Einstein descendo de rolimã por uma ladeira extremamente íngreme, e claro, mostrando a língua. Certa vez, pensei ter imagino Hitler beijando a mão de cada Judeu que sobreviveu na Alemanha, e pedindo desculpas. Mais absurdo ainda, foi vê-lo ser perdoado por todos, tendo um deles como melhor amigo e dando dinheiro ao filho mais novo dele em seu Bar Mitzvá, pode uma coisa dessas?

Pensei na inutilidade das guerras que o mundo foi obrigado a suportar. Imaginei que eu, franzino e sem um pingo de patriotismo, caso tivesse que ir à guerra, gostaria de ser o cara dos mantimentos. Fingiria-me de morto, me esconderia, e esperaria a guerra terminar até alguém vir me resgatar. Isso se eu não me misturasse ao povo nativo; seja de onde for.

Se eu sou covarde? Claro que eu sou. Eu já vi muitos salvadores da pátria com facas encravadas em seus crânios sendo cuspidos pelos seus adversários. Esses grandes patriotas ganham do Governo uma medalha de ouro, que a mãe recebe em mãos, em troca de seu filho subtraído numa batalha sem sentido.

As pessoas têm tempo, mas elas não querem parar pra pensar na fisiologia dos metacarpos. Elas deixam a beleza da vida passar. Assim nasceram os burocratas; criando empecilhos, acirrando disputas, deixando pessoas sem um lar.

Apesar de não parecer no dia a dia, eu acredito na paz. Eu acredito que existam pessoas que estão aí fora no mundo lutando por alguma coisa maior do que elas, pensado em outras pessoas, e
nas futuras gerações que habitarão um mundo cada vez mais deteriorado.

Dentro da minha própria ignorância, acredito que faço a minha parte não atrapalhando a benevolência dos outros. Eu vivo em constante contradição no meu profundo ceticismo, mas a minha viagem hoje, serve justamente para reencontrar o ser humano que resta aqui. Só acho um equivoco que a perpetuação desse bem, seja baseado em medos que representam o receio das retaliações que a fé impõe. O que falta ao mundo hoje, principalmente nas pessoas, é o desinteresse, o desapego ao material, que elas façam algo sem esperar nada em troca – isso sim, é ser genuinamente bom –, se eu pudesse citar um exemplo, deixando claro que não sou espírita, diria que Chico Xavier foi uma dessas pessoas.

Da janela, dá pra ver o sol se pondo. O sono me pega de jeito, e os pensamentos pseudo-filosóficos agora dão lugar a uma intensa e negra névoa de um profundo nada. É hora de aterrissar. No domingo tenho uma pilha de pratos pra lavar.


CRÔNICA: REALIDADE III - DO DINHEIRO, DA FÉ E DA FIDELIDADE

Acordei monossilábico hoje. Sem saco pra bater-papo. Sem saco pra fidalguia. Sem saco pra ouvir ou falar. Enfim, estou emasculado pra vida. Mas, pra quem vive de empreguinho, quem não estudou, quem não se dedicou, não pode fazer outra coisa se não se preparar para os rituais do dia a dia. Falando em rituais, hoje é dia de pagar o aluguel. A dona Lúcia vai começar a me ligar exatamente às 15h. Como eu sei? Bem, todo dia 30, desde que moro nesse apartamento, exatamente esse horário, meu telefone toca. Só posso imaginar que a dona Lúcia é uma solteirona daquelas que moram com doze ou quinze gatos, e um papagaio que fica na cozinha cagando, enquanto ela come a pizza de ontem que recém esquentou.

Vou deixar pra pensar numa desculpa esfarrapada na hora. Ainda é de manhã cedo, minhas remelas estão secas e impregnadas nos meus olhos, e mau humor é a última coisa que eu quero somada a essa maldita preguiça que insiste em me assolar todas as manhãs.

Desta vez, pela intensidade da fadiga, opto por ir de ônibus – o que é bem raro. Sem preconceito, mas os primeiros ônibus da manhã, lotados, sem espaço nem pra respirar, só não são piores que os do meio-dia, quando todos resolvem se unir, colando-se uns aos outros pelo suor.

Eu não tenho cartão de integração, já que não costumo usar o transporte público. A taxa é de R$ 2,39. Pago o cobrador com uma nota de dez, e espero meu troco pacientemente. Nesse meio tempo, enquanto espero, a catraca vai rodando, e eu vou sendo empurrado contra minha vontade á frente do ônibus, e ficando cada vez mais longe do meu dinheiro. Grito de longe: “ – Cobrador, cadê meu troco!?”. Ele responde: “ – Senhor, estou sem trocado, espera um momentinho, já lhe dou”.

Chega minha parada, estou longe do cobrador, e atrasado pro trabalho. Enfim, estou R$ 7,61 mais pobre, e as empresas de ônibus R$ 7,61 mais ricas. Com esse dinheiro, poderia pegar o ônibus mais três vezes, ou comprar uma carteira de cigarros e ainda me sobrariam alguns centavos.

Penso que é nesse desperdício de pequenas quantias que ficamos mais empobrecidos, afinal de contas, o dinheiro gasto com as despesas mensais estão contabilizadas, e achamos um absurdo que não sobre nada. Credito também isso, ao preconceito com as moedas.

Recentemente, entrou um novo cara na empresa em que trabalho. Boa pessoa, inteligente e até mesmo cordial. Mas, como não poderia deixar de ter algum defeito, revelou-se um evangélico daqueles radicais. No começo, trocava idéias, e até gostava de algumas conversas aleatórias. De repente, o infeliz decidiu que tinha uma tarefa ali naquele escritório, justo no lugar em que eu trabalhava, e a vítima claro, era eu. A tarefa? Bem, me evangelizar.

Depois que notei suas intenções, decidi que era hora de desfazer uma amizade. Afinal de contas, não se pode manter todo mundo ao redor, se você decidir pela honestidade e sinceridade. As pessoas não gostam do enfrentamento à uma realidade que difere das delas.
Infelizmente, algumas pessoas tem reações completamente inesperadas aos seus pensamentos e isso pode variar de uma tristeza sublime até uma raiva descontrolada cujo extravaso se atém exclusivamente a espancar o seu ‘opressor’.

Tive sorte, o cara apenas se assustou um pouco com minhas concepções, mas resolveu me largar de mão. Quando terminei o meu discurso e determinei um ponto final na minha posição em relação à fé e religião, ele deu de ombros e apenas disse:

“ – É uma pena, mais uma alma perdida”.

Eu não creio que existam almas perdidas, principalmente depois da invenção do GPS.

Eu vivo dentro das normas que a sociedade estipulou. Vivo conforme a legislação determina que as pessoas devam viver. Descreio de quase tudo que é imaterial, para mim, o tato é o melhor dos sentidos, pois traça o paralelo entre o real e o irreal.

Minhas lamúrias queixosas, meu cotidiano atarefado e monótono, traçam uma vida repetitiva, sem novidades, sem aventuras, mas seguidamente satisfatória, por eu poder ser hoje, quem eu realmente quis ser sem arrependimento algum.

Se existe mesmo o livre arbítrio, e se as pessoas são livres para escolher o que querem e o que não querem fazer de acordo com sua consciência – que é construída basicamente de princípios e conhecimento empírico – acredito piamente, que mesmo não acreditando em Jesus Cristo, Deus, ou qualquer outra nomenclatura divina, mesmo que eu esteja errado, não posso ir para o inferno.

Ouvi dizer que para entrar no reino dos céus, basta a sincera redenção dos pecados. E não me entra na cabeça, que um estuprador, assassino, ladrão, enfim, que um criminoso reunindo toda a capacidade de fazer mal aos outros, possa se safar tão fácil assim do que chamam de inferno, e eu, simplesmente por ser cético, pereceria a eternidade nas labaredas de Lúcifer.

Hoje me basta acreditar que se existe algo próximo dessa luta entre o bem e o mal, representados respectivamente por Deus e Diabo, ou Céu e Inferno, nada mais é do que a própria consciência, que de fato, tem dois pesos e duas medidas.

Me ocorre também, que todos nós – seres humanos – temos um lado mórbido, que ocasionalmente pode ser chamado de maldoso, mas que por se tratar de instinto, não poderia ser denominado assim.

Existir uma pessoa cem por cento boa está fora de cogitação, tanto quanto está fora de cogitação uma pessoa ser fiel a outra. Os raríssimos casos em que isso ocorre, trata-se de uma luta completamente sem sentido e desnecessária de algumas pessoas buscando ser algo que não são. A palavra fidelidade é a retratação FIEL da controvérsia humana.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CRÔNICA: Realidade II

Às vezes me bate a insônia. Ok, tudo bem, é normal. Muitas pessoas têm insônia, não? Mas o estranho, é que a maioria delas são operários-padrões, que tem de acordar todos os dias cedo, e labutar. Nada mais a dizer, com exceção dessa ressalva. O normal nesses casos seria eu levantar, ir até a geladeira, encher um copo de leite, acender um cigarro, e tentar aos poucos voltar a dormir.

Nada, não desta vez. Mudando um pouco do plano padrão aos casos de falta de sono, ligo a televisão em busca de entretenimento barato; filmes dublados, ou qualquer outra coisa que eu já tenha visto tantas vezes, que ao menos por nostalgia possa me alegrar, acalentando, até que enfim, eu consiga dormir. Mas, ao invés de achar qualquer coisa do tipo, me deparo com uma espécie de cartel bíblico.

Não importa o canal, a cena é sempre a mesma: um sujeito, um livro nas mãos, um público fiel, falatórios, gravata, e charlatanismo.

O mais legal disso, é que mesmo que você não seja religioso, e que tudo aquilo que esteja sendo dito seja em sua opinião, um monte de besteiras cuspidas, ao menos as performances dos pastores lhe atraem. Ah, e como atraem!

O meu assunto favorito é o apocalipse. Sempre lembrando que meu conhecimento bíblico é extremamente superficial. Mas quem nunca ouviu falar no fim do mundo: as bestas do apocalipse, Lúcifer, e toda aquela galera malvada que vai sair da terra e puxar os de comportamento ruim pra junto deles?

No final, não é tudo tão ruim. A carga de energia que eu gasto na hora que o pastor pede para os fieis sacaram de seus bolsos talões de cheque e entregarem no altar, me faz cair no sono como se eu tivesse levado um soco daqueles bem fortes e certeiros no rosto.

07:30. Hora de acordar. Remela nos olhos, bafo desproporcional, preguiça dos diabos, e todo um roteiro a ser seguido em menos de meia-hora.

Hoje não vai dar pra tomar café em casa, tem que ser na rua, e rápido. Paro na padaria na esquina do trabalho, olho ao redor e encontro o cara mais chato da cidade: o Ítalo. – Meu Deus –, penso. – É hoje...

Vou explicar o desanimo. Com certeza alguém conhece no mínimo algum leitor de Paulo Coelho. Pois é. Mais detalhes? Tá certo. O Ítalo Gusmão é engomado; engravatado, postura em 90º, se auto-intitula erudito, e gosta muito, mas muito mesmo, de encher o saco.

De dez livros que ele me indica, nove são de autoria do Paulo Coelho, e um deles, do Augusto Cury. Eu não sei quanto a vocês, mas eu com certeza creio que essa é a receita perfeita pro suicídio.

Pra piorar, ele tem no seu quarto um quadro enorme do Tony Belotto, e a série completa do tal do Bellini, personagem-título de seus livros. Credo!


Resumindo: Ítalo Gusmão é a personificação do mau gosto, e é o tipo de pessoa que quero bem longe de mim. Além de tudo, convenhamos: puta cara chato, né ?

Consigo me desvencilhar dele, corro pro trabalho e chego atrasado.

A pergunta é inevitável: - Atrasado, de novo!?

Beleza, também é natural levar uma escroteada de vez em quando.

Começa então, uma emocionante tarde, com ações que variam de sentar na cadeira e escrever, levantar e buscar café, ir pra fora e fumar cigarros. Todos os malditos dias.

Às vezes reclamo das visitas: representantes de sindicatos de todos os tipos, associações, políticos perdedores e os de carreira. De fato, nenhum deles me empolga. Mesmas mentiras, caras e bocas, interesseiros, e sem retorno financeiro.

Mas também tem o lado hilário disso tudo. Quem tem boca fala o que quer, mas eles exageram nas doses, e os alvos somos nós, que somos praticamente obrigados a ouvir. Às vezes dou indiretas bem diretas, interrompo discursos colocando minha playlist pra tocar no volume mais alto, desvio o olhar, finjo estar longe, até que a pessoa se toque, e pare de falar.

No final do expediente, bolsa nas costas, caminho longo pra casa, a pé.

Paro na farmácia pra comprar analgésicos e relaxantes musculares. No fim do dia, já moído, é normal estar com as costas travadas. Encontro a Joana, farmacêutica, bonita e atenciosa que sempre me alerta a possíveis alterações no meu cérebro de tanto tomar remédios. Por incrível que pareça, a adoro. Uma mulher chata, que ao menos tenta me alertar sobre a minha saúde, mesmo que não tenha aprendido em quase um ano, que os alertas a esse respeito, não surtem efeitos em mim.

Ela me atrai. Mas meus pensamentos pecaminosos sempre me levam a um trágico momento de reflexão, cujo único objetivo é projetar os momentos dolorosos do pós-coito.

Fico pensando: - Malditos cientistas. Cadê a porra do tele-transporte?

Então, para evitar possíveis infortúnios, conversas esfarrapadas, e gastos desnecessários, ao invés de lhe dar uma cantada, e a convidar para ir à minha casa, dou de ombros, e saio da Farmácia. Sozinho, de novo, com muito chão pela frente, muitas idéias na cabeça, e o peso do mundo em minha consciência.

Pensar de mais é um problema pra qualquer pessoa. Todos sabem que toda a ação tem uma conseqüência, mas nem sempre elas são ruins. Pra mim, invariavelmente, mesmo descrendo da fé dos outros, e não havendo minha própria fé, acredito em algo abstrato. Aliás, duas coisas abstratas: sorte e azar. Minha explicação é razoável até certo ponto.

Coisas do cotidiano não costumam dar certo pra mim. Por exemplo: se eu perco um dos meus tênis e demoro a encontrá-lo, depois de muito tempo, quando o encontro, noto que também perdi o meu relógio.
Se chego a um restaurante com vontade de comer frango, a garçonete me avisa que infelizmente só estão servindo bife. Se eu vou ao cinema e quero ver filmes de ação, a sessão já está lotada, e a única opção é o dramalhão mexicano de diretor desconhecido.

Antes de chegar em casa, entro na tabacaria como de costume, e peço:

- Um Marlboro vermelho, por favor?

E o atendente me diz:

- Só temos Derby cinza.

Viu? Então, se alguém pergunta se eu acredito em algo, e se tenho em que me apegar, não tenho outra escolha se não responder que sou crédulo do azar.

Chego em casa, paro no portão, retiro as correspondências e voilá: contas de energia, água, banco, telefone e TV por assinatura.

Mas, não fico triste, nem com raiva, e muito menos apreensivo. Tudo se resolve, e eu já me sinto bem confortável com essas situações do dia-a-dia. De manhã cedo comprei um litro de leite para tomar a noite. E a idéia de me saciar com um copo bem gelado daquele saboroso líquido me movia feliz até entrar em casa.

Antes de abrir a porta, meu vizinho sobe o muro e diz: - Olá vizinho, faltou luz a tarde inteira, rapaz. Tá complicado aqui, só voltou agora. – puxa assunto.

Já senti que ele vai me pedir alguma coisa, afinal de contas, não tenho nenhum motivo pra conversar com ele, e ele também nenhum motivo pra me alertar sobre as coisas do dia a dia.

- Tem como me arrumar sabão em pó e um pouco de arroz pra janta? - pede.

Eu, sem muito que poder fazer, e também pra não parecer tão pão duro, lhe dou o que me pediu e finalmente posso voltar a pensar no leite:

- Ah, agora é minha vez de me divertir.

Abro a geladeira, pego a faca, corto bem devagar a embalagem do leite. Pego o meu melhor copo, e o encho até a borda.

Antes de beber, quando se aproxima da minha boca, sinto um cheiro estranho, de mofo, e penso: - Deve ser do sofá, ou das paredes da casa.

Quando engulo, sinto a fatalidade: além de o leite estar quente, por ter passado a tarde inteira no refrigerador sem energia elétrica, ele também azedou, e mofou.

Essa é minha segunda dose de realidade diária, que eu chamo de: o azar como amigo.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

CRÔNICA: Realidade

Quando eu acordo, não posso esquecer de escovar os dentes, pentear os cabelos, fazer a barba e cuspir resíduos de cigarro que fiquei pigarreando a noite inteira. Entro no box do banheiro, olho o meu pinto murcho, dou risada, acho tudo engraçado, falta tesão, falta ereção, mas não falta humor. Meia hora de água caindo na cara. A higiene aqui não conta. Na verdade, só o que conta é o prazer que eu sinto ao notar que minha mente foi pra outro lugar, bem longe, incolor, inodoro e imensurável. Quando volto, lembro que não tenho poço artesiano, e que há muito tempo pago contas exorbitantes de energia elétrica e água. Eu não sou rico, eu sou pobre, um pobre coitado, que não pode esquecer de uma outra coisa muito importante antes de sair de casa.

Ao abrir a geladeira, vejo uma cebola cortada ao meio e uma garrafa d’água já pela metade, parece gelada, mas só parece. Sinto o cheiro de queimado, olho atrás da geladeira e confirmo: queimou. Mas não ligo. É só mais um gasto, eu já estou gasto, o mundo está gasto, e o bolso está escasso. Além do mais, o cheiro me faz lembrar comida – mesmo que seja queimada –, e nada melhor que comida queimada, com um copo de pinga, com dois dedos da boa, pura e velha realidade.

Não dou importância, não sigo frases de filosofia, e não vivo um dia de cada vez. É tudo monótono, mas ao mesmo tempo tão engraçado. As pessoas riem de mim; elas dão risada porque vêem os pombos cagar na minha cabeça, ou porque os carros passam na água e me molham enquanto ando na calçada. A Polícia ri de mim; ela ri porque sou certinho, mas gravei alguns cd’s e esqueci de pagar aos autores seus devidos direitos autorais, e os deixei no carro: fui preso. As crianças riem de mim; eu sou corcunda, meu ombro esquerdo é mais abaixo do que o direito, e elas estão acostumadas com pessoas perfiladas, não só com os seus corpos, mas com as pessoas em sua volta.

As mulheres riem de mim. Minhas olheiras, falta de dinheiro, de vontade, de libido, me tiram qualquer chance de ter sucesso com elas; mas elas riem de mim, caçoam de mim, e no fundo, me adoram. Por que me adoram? Porque eu ainda perco meu tempo exaltando suas qualidades. Elas gostam disso. Mas o prazer morre na falta de dinheiro.

Não ser notado é maravilhoso. Eu gosto disso. Aliás, essa seria a idéia de vida perfeita para mim. Mas como já disse anteriormente, mesmo que com uma conotação ruim, as pessoas, a Polícia, as mulheres e crianças não me deixam em paz. Alvo. Essa é a palavra. Os outros não gostam de ver que eu ando em dissonância em relação ao mundo. Gosto de atravessar a rua devagar. Isso causa revolta nos motoristas: eles querem mostrar o quão poderosos são com suas máquinas carburadas, então eles aceleram pra ver se eu apresso o passo, mas nunca apresso. Por sorte, ainda não morri.

Eu não sei qual é a relação que tenho com o restante do mundo. Minha indiferença causa espanto nas pessoas, e esse espanto se torna raiva, ou qualquer tipo de aversão. Só sei que não gostam de mim.

Quando vou pra faculdade, muito, mas muito do mais do mesmo: os estudantes do meu curso, o Direito, a partir do 3º período, desfilam nos corredores da Universidade. Todos eles, praticamente sem exceção, andam engravatados, com seus Vade Mecum na mão, com olhar de superioridade, e esquecendo o detalhe mínimo, de que a maioria deles sequer irá finalizar o curso, e que são assim como a maioria da população mundial, grandes perdedores em potencial. Mas claro, com elegância.

Isso me remete ao processo fúnebre. Qual a motivação de enterrar alguém de terno e gravata? Pelo que me consta, ainda existe uma maioria populacional que carece de comida e vestimenta. Para manter tradições, e para respeitar o corpo desalmado – que irá apodrecer no máximo em um mês, completamente –, veste-se o morto de cima a baixo, caracterizando-o, e fazendo com que chegue aos portões do céu com boa aparência. E como seria isso? Relativo a uma entrevista de emprego? Não sei, é cada uma...

Ao voltar pra casa, o cheiro de queimado já se alastrou por todos os cômodos. Já estou sem fome. Estou gripado, meu nariz tampado, e como o paladar é feito 90% de olfato, me livro de ter que pensar no que eu poderia estar comendo, e não posso.

Aí tem a cama. E claro, o teto. O teto do meu quarto é o que tenho de mais emblemático na minha vida: ao acordar, o vejo e antes de dormir, também. Algumas coisas mudam, assim como nos seres humanos. Mas a não ser com toques de remodelagem, eles tendem a ruir, criar fissuras, e alguns casos – principalmente os mais envelhecidos – até cair.

Como penso muito nisso, os meus sonhos são feitos basicamente de metáforas análogas ao meu teto. Morro de tédio; não bebo mais. O cigarro ainda é meu amigo, mas ele também é infiel, pois me deixa só quando falta dinheiro. Penso: - Mulheres e cigarros, me deixam saciado por 10 ou 15 minutos, enjôo, mando-os embora, e menos de meia-hora, os quero de volta. Enfim, vícios inerentes à minha existência.

Fecho os olhos. Demoro muito a conseguir dormir, e enquanto isso eu penso no dia que passou, mas nunca penso no dia que vai vir. Não adianta criar conjecturas sobre o futuro. As pessoas sabem que um dia, o mundo irá acabar. Isso sim é realidade e sólido. Mas e o resto? O resto na verdade, é o espaço que é preenchido entre o início da sua vida e o fim do mundo. O engraçado disso, é que se espaço foi feito para ser preenchido, como então muitas pessoas preenchem sua vida de solidão? Não dizem que a solidão é vazia? E como é ser cheio de vazio? Taí outra coisa que não entendo.

Pra deixar a situação ainda pior, meus sonhos são assim como minha vida, muito monótonos. Não há gnomos, nem viagens astrais. Não há volta ao passado, nem a oportunidade de ser outra pessoa. Não tem prospecção ao futuro, nem auto-análises frutíferas; e são inveriavalmente escassos de entusiasmo.

No final, tudo se repete: essa é a minha dose diária de realidade.

VINICIUS CANOVA PIRES

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Estados Unidos da América contra John Lennon

Os beatlemaníacos com certeza se entristecem ao relembrar o dia 8 de dezembro de 1980. Entretanto, os que não nasceram na época, e nem contemplaram a magnitude do grupo inglês, também sentem um enorme baque. Isso porque, historicamente, os Beatles traçaram um linha imaginária na música: antes, e depois deles.

Todos com seus respectivos talentos singulares, foram durante décadas, e ainda são, os pilares de sustentação pra qualquer pessoa que tenha um bom gosto musical, e claro, paixão pela vida.

Alguns ainda atribuem o desmanche dos Beatles à entrada de Yoko Ono na vida de Lennon, fazendo-o rumar para outros campos culturais, despontando em carreira solo, e principalmente, por se envolver cada vez mais nas questões políticas do mundo. No caso, dentre todas as suas críticas, era mais enfaticamente contra a Guerra do Vietnã, cantarolando votos de paz e amor ao mundo todo.

Nesse caso eu discordo da maioria. No fim das contas, Ono completou John Lennon. Ele era a própria letra de suas músicas, ela no entanto, era todo o resto, da harmonia até a genialidade.

John Lennon bateu de frente com Nixon. O único Presidente do Estados Unidos à renunciar ao seu cargo por denúncias comprovadas que o desmoralizaram e que o marcaram historicamente como protagonista do caso Watergate.

Todavia, apesar da descoberta, e da saída estratégica de Nixon, é impossível dizer que o republicano não exercia um poder enorme sobre os Estados Unidos da América, tendo em seu percalço, somente a sombra de uma juventude que se rebelava, justamente contra a guerra. A voz que se levantava contra o sangue derramado e as milhares de vidas jogadas fora de forma desnecessária, num enfrentamento considerado por muitos historiadores, uma causa ridícula e até mesmo inexistente, era o único modo de protesto válido e eficaz.

O ex-líder dos Beatles era uma ameaça ao Governo americano, que ia perdendo o seu prestígio à medida que as pessoas paravam para ouvi-lo cantar Give Peace a Chance, e principalmente, quando as pessoas sentiam que a mensagem que a música passava, deveria ser levada no mundo todo, cantada em uníssono para que todos pudessem ouvir.

Senadores, o próprio Nixon, e até o FBI decidiram que era hora de dar fim à influência que Lennon – o pacifista –, exercia sobre os jovens norte-americanos. Essa decisão teve que ser tomada com caráter emergencial, principalmente, depois que John Lennon conseguiu libertar através de sua música, o ativista John Sinclair, que fora preso e condenado a dez anos de prisão, por portar dois baseados.

Começou assim uma batalha intensa que durou cinco anos. A imigração queria deportar John Lennon, usando o argumento pífio de que a sua vida pregressa o vinculava com narcóticos, e os Estados Unidos da América não tolerariam esse tipo de imigrante em sua própria casa.

Enfim, a guerra acabou, o filho de John Lennon e Yoko Ono nasceu, e eles gozaram – mesmo que por muito pouco tempo – o melhor que a vida tem à oferecer: paz, tranqüilidade e sucesso.

No dia em que o músico foi assassinado, as pessoas se reuniram em todo o mundo para cantar “Give Peace a Chance”, e para muitos deles, a partir dali, John Lennon havia deixado de ser única e exclusivamente um artista de sucesso, para tornar-se também um pilar da conscientização humana, sempre ponderando pontos em prol da paz, e usando de forma consciente a sua fama para dar no futuro, dias melhores para o mundo.

Vinicius Canova Pires