terça-feira, 24 de agosto de 2010

CRÔNICA: REALIDADE III - DO DINHEIRO, DA FÉ E DA FIDELIDADE

Acordei monossilábico hoje. Sem saco pra bater-papo. Sem saco pra fidalguia. Sem saco pra ouvir ou falar. Enfim, estou emasculado pra vida. Mas, pra quem vive de empreguinho, quem não estudou, quem não se dedicou, não pode fazer outra coisa se não se preparar para os rituais do dia a dia. Falando em rituais, hoje é dia de pagar o aluguel. A dona Lúcia vai começar a me ligar exatamente às 15h. Como eu sei? Bem, todo dia 30, desde que moro nesse apartamento, exatamente esse horário, meu telefone toca. Só posso imaginar que a dona Lúcia é uma solteirona daquelas que moram com doze ou quinze gatos, e um papagaio que fica na cozinha cagando, enquanto ela come a pizza de ontem que recém esquentou.

Vou deixar pra pensar numa desculpa esfarrapada na hora. Ainda é de manhã cedo, minhas remelas estão secas e impregnadas nos meus olhos, e mau humor é a última coisa que eu quero somada a essa maldita preguiça que insiste em me assolar todas as manhãs.

Desta vez, pela intensidade da fadiga, opto por ir de ônibus – o que é bem raro. Sem preconceito, mas os primeiros ônibus da manhã, lotados, sem espaço nem pra respirar, só não são piores que os do meio-dia, quando todos resolvem se unir, colando-se uns aos outros pelo suor.

Eu não tenho cartão de integração, já que não costumo usar o transporte público. A taxa é de R$ 2,39. Pago o cobrador com uma nota de dez, e espero meu troco pacientemente. Nesse meio tempo, enquanto espero, a catraca vai rodando, e eu vou sendo empurrado contra minha vontade á frente do ônibus, e ficando cada vez mais longe do meu dinheiro. Grito de longe: “ – Cobrador, cadê meu troco!?”. Ele responde: “ – Senhor, estou sem trocado, espera um momentinho, já lhe dou”.

Chega minha parada, estou longe do cobrador, e atrasado pro trabalho. Enfim, estou R$ 7,61 mais pobre, e as empresas de ônibus R$ 7,61 mais ricas. Com esse dinheiro, poderia pegar o ônibus mais três vezes, ou comprar uma carteira de cigarros e ainda me sobrariam alguns centavos.

Penso que é nesse desperdício de pequenas quantias que ficamos mais empobrecidos, afinal de contas, o dinheiro gasto com as despesas mensais estão contabilizadas, e achamos um absurdo que não sobre nada. Credito também isso, ao preconceito com as moedas.

Recentemente, entrou um novo cara na empresa em que trabalho. Boa pessoa, inteligente e até mesmo cordial. Mas, como não poderia deixar de ter algum defeito, revelou-se um evangélico daqueles radicais. No começo, trocava idéias, e até gostava de algumas conversas aleatórias. De repente, o infeliz decidiu que tinha uma tarefa ali naquele escritório, justo no lugar em que eu trabalhava, e a vítima claro, era eu. A tarefa? Bem, me evangelizar.

Depois que notei suas intenções, decidi que era hora de desfazer uma amizade. Afinal de contas, não se pode manter todo mundo ao redor, se você decidir pela honestidade e sinceridade. As pessoas não gostam do enfrentamento à uma realidade que difere das delas.
Infelizmente, algumas pessoas tem reações completamente inesperadas aos seus pensamentos e isso pode variar de uma tristeza sublime até uma raiva descontrolada cujo extravaso se atém exclusivamente a espancar o seu ‘opressor’.

Tive sorte, o cara apenas se assustou um pouco com minhas concepções, mas resolveu me largar de mão. Quando terminei o meu discurso e determinei um ponto final na minha posição em relação à fé e religião, ele deu de ombros e apenas disse:

“ – É uma pena, mais uma alma perdida”.

Eu não creio que existam almas perdidas, principalmente depois da invenção do GPS.

Eu vivo dentro das normas que a sociedade estipulou. Vivo conforme a legislação determina que as pessoas devam viver. Descreio de quase tudo que é imaterial, para mim, o tato é o melhor dos sentidos, pois traça o paralelo entre o real e o irreal.

Minhas lamúrias queixosas, meu cotidiano atarefado e monótono, traçam uma vida repetitiva, sem novidades, sem aventuras, mas seguidamente satisfatória, por eu poder ser hoje, quem eu realmente quis ser sem arrependimento algum.

Se existe mesmo o livre arbítrio, e se as pessoas são livres para escolher o que querem e o que não querem fazer de acordo com sua consciência – que é construída basicamente de princípios e conhecimento empírico – acredito piamente, que mesmo não acreditando em Jesus Cristo, Deus, ou qualquer outra nomenclatura divina, mesmo que eu esteja errado, não posso ir para o inferno.

Ouvi dizer que para entrar no reino dos céus, basta a sincera redenção dos pecados. E não me entra na cabeça, que um estuprador, assassino, ladrão, enfim, que um criminoso reunindo toda a capacidade de fazer mal aos outros, possa se safar tão fácil assim do que chamam de inferno, e eu, simplesmente por ser cético, pereceria a eternidade nas labaredas de Lúcifer.

Hoje me basta acreditar que se existe algo próximo dessa luta entre o bem e o mal, representados respectivamente por Deus e Diabo, ou Céu e Inferno, nada mais é do que a própria consciência, que de fato, tem dois pesos e duas medidas.

Me ocorre também, que todos nós – seres humanos – temos um lado mórbido, que ocasionalmente pode ser chamado de maldoso, mas que por se tratar de instinto, não poderia ser denominado assim.

Existir uma pessoa cem por cento boa está fora de cogitação, tanto quanto está fora de cogitação uma pessoa ser fiel a outra. Os raríssimos casos em que isso ocorre, trata-se de uma luta completamente sem sentido e desnecessária de algumas pessoas buscando ser algo que não são. A palavra fidelidade é a retratação FIEL da controvérsia humana.

Um comentário:

Anônimo disse...

Concordo quando diz que não há pessoas cem por cento fiéis. Poré, cuidado com tanto ceticismo.