segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CRÔNICA: Realidade II

Às vezes me bate a insônia. Ok, tudo bem, é normal. Muitas pessoas têm insônia, não? Mas o estranho, é que a maioria delas são operários-padrões, que tem de acordar todos os dias cedo, e labutar. Nada mais a dizer, com exceção dessa ressalva. O normal nesses casos seria eu levantar, ir até a geladeira, encher um copo de leite, acender um cigarro, e tentar aos poucos voltar a dormir.

Nada, não desta vez. Mudando um pouco do plano padrão aos casos de falta de sono, ligo a televisão em busca de entretenimento barato; filmes dublados, ou qualquer outra coisa que eu já tenha visto tantas vezes, que ao menos por nostalgia possa me alegrar, acalentando, até que enfim, eu consiga dormir. Mas, ao invés de achar qualquer coisa do tipo, me deparo com uma espécie de cartel bíblico.

Não importa o canal, a cena é sempre a mesma: um sujeito, um livro nas mãos, um público fiel, falatórios, gravata, e charlatanismo.

O mais legal disso, é que mesmo que você não seja religioso, e que tudo aquilo que esteja sendo dito seja em sua opinião, um monte de besteiras cuspidas, ao menos as performances dos pastores lhe atraem. Ah, e como atraem!

O meu assunto favorito é o apocalipse. Sempre lembrando que meu conhecimento bíblico é extremamente superficial. Mas quem nunca ouviu falar no fim do mundo: as bestas do apocalipse, Lúcifer, e toda aquela galera malvada que vai sair da terra e puxar os de comportamento ruim pra junto deles?

No final, não é tudo tão ruim. A carga de energia que eu gasto na hora que o pastor pede para os fieis sacaram de seus bolsos talões de cheque e entregarem no altar, me faz cair no sono como se eu tivesse levado um soco daqueles bem fortes e certeiros no rosto.

07:30. Hora de acordar. Remela nos olhos, bafo desproporcional, preguiça dos diabos, e todo um roteiro a ser seguido em menos de meia-hora.

Hoje não vai dar pra tomar café em casa, tem que ser na rua, e rápido. Paro na padaria na esquina do trabalho, olho ao redor e encontro o cara mais chato da cidade: o Ítalo. – Meu Deus –, penso. – É hoje...

Vou explicar o desanimo. Com certeza alguém conhece no mínimo algum leitor de Paulo Coelho. Pois é. Mais detalhes? Tá certo. O Ítalo Gusmão é engomado; engravatado, postura em 90º, se auto-intitula erudito, e gosta muito, mas muito mesmo, de encher o saco.

De dez livros que ele me indica, nove são de autoria do Paulo Coelho, e um deles, do Augusto Cury. Eu não sei quanto a vocês, mas eu com certeza creio que essa é a receita perfeita pro suicídio.

Pra piorar, ele tem no seu quarto um quadro enorme do Tony Belotto, e a série completa do tal do Bellini, personagem-título de seus livros. Credo!


Resumindo: Ítalo Gusmão é a personificação do mau gosto, e é o tipo de pessoa que quero bem longe de mim. Além de tudo, convenhamos: puta cara chato, né ?

Consigo me desvencilhar dele, corro pro trabalho e chego atrasado.

A pergunta é inevitável: - Atrasado, de novo!?

Beleza, também é natural levar uma escroteada de vez em quando.

Começa então, uma emocionante tarde, com ações que variam de sentar na cadeira e escrever, levantar e buscar café, ir pra fora e fumar cigarros. Todos os malditos dias.

Às vezes reclamo das visitas: representantes de sindicatos de todos os tipos, associações, políticos perdedores e os de carreira. De fato, nenhum deles me empolga. Mesmas mentiras, caras e bocas, interesseiros, e sem retorno financeiro.

Mas também tem o lado hilário disso tudo. Quem tem boca fala o que quer, mas eles exageram nas doses, e os alvos somos nós, que somos praticamente obrigados a ouvir. Às vezes dou indiretas bem diretas, interrompo discursos colocando minha playlist pra tocar no volume mais alto, desvio o olhar, finjo estar longe, até que a pessoa se toque, e pare de falar.

No final do expediente, bolsa nas costas, caminho longo pra casa, a pé.

Paro na farmácia pra comprar analgésicos e relaxantes musculares. No fim do dia, já moído, é normal estar com as costas travadas. Encontro a Joana, farmacêutica, bonita e atenciosa que sempre me alerta a possíveis alterações no meu cérebro de tanto tomar remédios. Por incrível que pareça, a adoro. Uma mulher chata, que ao menos tenta me alertar sobre a minha saúde, mesmo que não tenha aprendido em quase um ano, que os alertas a esse respeito, não surtem efeitos em mim.

Ela me atrai. Mas meus pensamentos pecaminosos sempre me levam a um trágico momento de reflexão, cujo único objetivo é projetar os momentos dolorosos do pós-coito.

Fico pensando: - Malditos cientistas. Cadê a porra do tele-transporte?

Então, para evitar possíveis infortúnios, conversas esfarrapadas, e gastos desnecessários, ao invés de lhe dar uma cantada, e a convidar para ir à minha casa, dou de ombros, e saio da Farmácia. Sozinho, de novo, com muito chão pela frente, muitas idéias na cabeça, e o peso do mundo em minha consciência.

Pensar de mais é um problema pra qualquer pessoa. Todos sabem que toda a ação tem uma conseqüência, mas nem sempre elas são ruins. Pra mim, invariavelmente, mesmo descrendo da fé dos outros, e não havendo minha própria fé, acredito em algo abstrato. Aliás, duas coisas abstratas: sorte e azar. Minha explicação é razoável até certo ponto.

Coisas do cotidiano não costumam dar certo pra mim. Por exemplo: se eu perco um dos meus tênis e demoro a encontrá-lo, depois de muito tempo, quando o encontro, noto que também perdi o meu relógio.
Se chego a um restaurante com vontade de comer frango, a garçonete me avisa que infelizmente só estão servindo bife. Se eu vou ao cinema e quero ver filmes de ação, a sessão já está lotada, e a única opção é o dramalhão mexicano de diretor desconhecido.

Antes de chegar em casa, entro na tabacaria como de costume, e peço:

- Um Marlboro vermelho, por favor?

E o atendente me diz:

- Só temos Derby cinza.

Viu? Então, se alguém pergunta se eu acredito em algo, e se tenho em que me apegar, não tenho outra escolha se não responder que sou crédulo do azar.

Chego em casa, paro no portão, retiro as correspondências e voilá: contas de energia, água, banco, telefone e TV por assinatura.

Mas, não fico triste, nem com raiva, e muito menos apreensivo. Tudo se resolve, e eu já me sinto bem confortável com essas situações do dia-a-dia. De manhã cedo comprei um litro de leite para tomar a noite. E a idéia de me saciar com um copo bem gelado daquele saboroso líquido me movia feliz até entrar em casa.

Antes de abrir a porta, meu vizinho sobe o muro e diz: - Olá vizinho, faltou luz a tarde inteira, rapaz. Tá complicado aqui, só voltou agora. – puxa assunto.

Já senti que ele vai me pedir alguma coisa, afinal de contas, não tenho nenhum motivo pra conversar com ele, e ele também nenhum motivo pra me alertar sobre as coisas do dia a dia.

- Tem como me arrumar sabão em pó e um pouco de arroz pra janta? - pede.

Eu, sem muito que poder fazer, e também pra não parecer tão pão duro, lhe dou o que me pediu e finalmente posso voltar a pensar no leite:

- Ah, agora é minha vez de me divertir.

Abro a geladeira, pego a faca, corto bem devagar a embalagem do leite. Pego o meu melhor copo, e o encho até a borda.

Antes de beber, quando se aproxima da minha boca, sinto um cheiro estranho, de mofo, e penso: - Deve ser do sofá, ou das paredes da casa.

Quando engulo, sinto a fatalidade: além de o leite estar quente, por ter passado a tarde inteira no refrigerador sem energia elétrica, ele também azedou, e mofou.

Essa é minha segunda dose de realidade diária, que eu chamo de: o azar como amigo.

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