terça-feira, 28 de abril de 2009

Crônicas da morte: Três longos meses



A vida de uma pessoa que está com câncer pode ser um parque de diversões para algumas pessoas. Principalmente no meu caso: Estágio terminal de câncer no pulmão. Toda a frustração da luta contra uma doença temível, pode ser substituída facilmente quando nos damos conta de que a morte é a única coisa que nos restou. No meu caso, meu juiz fui eu mesmo, e o porta-voz, o Dr. Alberto de Fariah, Oncologista do Hospital das Clínicas em São Paulo-SP. Nas palavras dele:

“- Bem meu caro Vinicius, eu não costumo fazer rodeios...”

“- Quanto tempo, Dr.? Sem mais delongas...”

“- Sendo o mais otimista possível, três meses.”
“- Podemos interná-lo e diminuir a intensidade da dor com toda a estrutura, comodidade e medicamentos que possuímos neste hospital pra aliviar sua dor.”

“- Ou?”

“- Ou você pode viver os três piores meses da sua vida, sofrendo, e com chances de hemorragias internas que te levariam a morte no mesmo instante.”

“- Foi um prazer conhecê-lo Dr., vou pra casa.”

“- A escolha é sua. Se mudar de idéia, estarei aqui.”

Eu não mudaria de idéia. Eu nunca mudo. Eu sempre faço escolhas rápidas e precisas, mesmo que elas possam me levar à total perdição. As dores já começaram a aparecer gradativamente, às vezes elas somem, às vezes não. Pensei em procurar no mercado negro um pouco de morfina, ou algo do tipo. Mas eu não sei por que, o suplício da dor, me faz sentir menos culpado pelo meu próprio destino. Só existem duas pessoas no mundo que sabem do meu diagnóstico: Eu e o meu médico. E eu prefiro que continue assim. Não tenho filhos, nem esposa, nem ninguém que possa se interessar por um cara de meia idade que está prestes a se tornar fertilizante de solo.

Eu tento não pensar muito na morte, tento não pensar na fé que eu não tenho. Mas é impossível não criar teorias quando eu observo o ar-condicionado esfriar meu isqueiro Zippo. Ele fica gelado, tão frio que nem consigo acreditar que aquilo é capaz de acender um cigarro. E quando paro pra pensar e ver o meu cigarro queimando aos poucos, vejo aquela cinza aparecer vagarosamente, enquanto ele vai se incinerando. Penso que talvez, o inferno seja algo parecido com isso. A eternidade de sofrimento lento e denso. Então não há sinceramente, motivo para temer o inferno, afinal de contas, ele é somente um espelho eterno do que eu já vivi até agora.

Algumas pessoas não têm idéia, de que agonizar por dentro, seja talvez, muito pior do que ser castigado fisicamente. Quando sua cabeça é seu único companheiro íntimo pra conversas, você acaba se confrontando diretamente todos os dias. E as dúvidas, que por si só já são cruéis, acabam se intensificando na sua existência e já não há mais espaço pra qualquer outra coisa na vida, a não ser, respondê-las. Mas por mais que seja difícil não cair nesse trocadilho da vida, ainda é muito melhor, encontrar suas respostas em algo divino, mesmo que você não dê crédito à absolutamente nada. Ao menos, suas dúvidas serão respondidas por alguma coisa maior, algo que lhe dê um alicerce pra continuar vivendo e ser feliz como os demais seres humanos. Infelizmente preciso de respostas concretas, tudo que fica dúbio me deixa com o pé lá atrás.

É muito raro eu receber visitas em casa. Mas os poucos que ainda tem esse “privilégio” de contemplar a bela visão de minha moradia, obviamente, se espantam. Garrafas de licor, vodca, uísque e tequilas jogadas pela casa. Latas de cerveja amontoadas no meu quarto, e cinzeiros, muitos e muitos cinzeiros. Bom, com certeza é um dos caminhos para a morte, mas por experiência própria, posso dizer que é o mais prazeroso. Um eremita precisa saber como organizar suas coisas, e eu lhe garanto, que apesar da bagunça na casa, para mim, não poderia estar melhor.

Nas minhas duas estantes encontram-se todos os tipos de livros. Tudo que se possa imaginar, como se fosse uma biblioteca municipal de cidade pequena. Modesta, porém, completa e informativa. Ser ávido por informação pode tornar-se uma faca de dois gumes: Pode ser incrivelmente bom saber mais do que os outros, mas pode ser também muito frustrante ir descobrindo o quanto você não sabe de absolutamente nada. E quanto mais se lê, mais se ouve e mais se aprende mais se quer saber. É um vício pior do que os outros, por ser um vício que atraí outros. A informação traz a ansiedade de aprender mais, altera seu relógio biológico, e ajuda a criar hábitos como o próprio cigarro que no começo parece servir de rédeas para toda essa ansiedade. Se você aceitar um conselho de um moribundo: Continue burro.

Pensei que talvez eu pudesse pegar minhas economias, e começar a fazer viagens pelo mundo, e conhecer lugares que me dariam um pouco de prazer antes de morrer. Mas sinceramente, não vejo sentido algum. As pessoas gostam de ver e fazer coisas bonitas antes de morrer, ou irem embora, como se quisessem diminuir o teor sombrio de uma despedida. Isso não existe, não para mim. Talvez seja melhor passar os dias que me restam na minha própria casa, onde eu escolhi os caminhos que me fizeram declinar pela vida. O engraçado é que mesmo sendo uma pessoa descrente, não consigo fazer com que cessem as perguntas na minha cabeça. Talvez, se eu realmente fosse convicto de que não há nada após a morte, eu simplesmente relaxaria, veria algum filme bom, tomaria uma cerveja e fumaria minha ultima carteira de cigarros sem peso na consciência. Mas também não consigo fazer isso.

Estou numa encruzilhada com aquilo que eu sou, e aquilo que eu poderia ter sido se escolhesse os caminhos diferentes. O ponto central da questão, normalmente é aquele que resolve qualquer problema em qualquer circunstância. Não no meu caso. Eu consigo me enxergar no meio de uma situação, onde aparecem diversos caminhos, cada um mais confuso do que o outro, onde eu, em minha posição de privilégio não sou nem de perto a solução.

Já consigo sentir meus órgãos se estraçalhando por dentro, e o derramamento de sangue preencher meus pulmões. E estou sorrindo. Dói. Dói muito. Mas minhas dúvidas não me deixam pensar na dor. Eu vou morrer afogado em meu próprio sangue. Uma morte teatral, digna de ser contada no cinema. Mas infelizmente para os roteiristas, a minha vida foi tão vazia, tão sem graça, que até uma morte com traços de pintura de Pablo Picasso, não teria nexo suficiente para ser contada. Adeus.

Vinicius Canova Pires

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