Lembro que pouco antes da minha morte, uma morte sem graça, digna de quem passou a vida inteira atrás de folhas de caderno, máquinas de escrever e computadores, datilografava um texto sobre golfinhos (enfatizando a idéia de que tudo realmente é uma merda pouco antes de morrer). O mais hilário disso tudo, é que eu consegui ainda, assinar a matéria, infelizmente como aqui a gente perde o contato com aquele mundo anterior, não posso dizer se foi publicada em anexo à alguma mensagem de luto – mensagens que já escrevi diversas vezes à colegas, amigos e familiares – é, possívelmente alguém o fez, vai saber.
Felizmente minha morte não foi dolorosa, apenas me impressionou o fato de que em meu último resquício de consciência eu me desse conta de que o sangue jorrava de meus ouvidos e algumas outras cavidades em meu rosto. Acidente vascular cerebral. E não era pra menos, afinal de contas minha vida sempre foi regada à cigarros, uísque, e comida pesada. Claro que eu não me arrependo. Morrer cedo ou morrer tarde? Que diferença faz? O ponto vital é viver! E eu vivi! Dentro do jornalismo convivi com o mais exagerado puritanismo, e sei qual o destino: morrer com cento e poucos anos, e não ter feito nada que desse um pingo de prazer. Nisso eu não pequei, ao menos ao meu ver.
Ah! As pessoas com certeza querem saber da transição. Ah, a transição, ufa! Se você já fez o trajeto de Porto Velho à São Paulo de ônibus, é provável que ainda falte um bocado pra compreender a magnitude tediosa dessa empreitada. E nem sequer escolhemos! Já estou há algum tempo aqui, tempo suficiênte pra dizer que por enquanto não há nada demais. O que difere um pouco, é que já não existe mais a parte física. Sou apenas consciência, sózinho, com um bocado de espaço em branco para ser preenchido. Não sei se é uma missão, se Deus realmente existe, mas aqui não é tão divertido quanto lá na terra.
O que gosto daqui é que eu tenho acesso irrestrito à minha lembrança. Posso buscar tudo que eu já fiz, desde o momento de minha concepção (Pulei essa parte, realmente consegue ser mais tedioso do que o que vivo aqui, agora). Posso recordar minha infância, o primeiro cigarro, a primeira namorada, a primeira briga, a perda da virgindade, os valentões da escola, o meu primeiro e suado emprego. A dificuldade que era estudar, ler e trabalhar, tendo que harmoniosamente relacionar essas atividades. Aqui é o contrário do que pensei, achei que caíria no inferno, porque sim, eu acredito em Deus, mas nunca vivi de acordo com os princípios dogmáticos de qualquer religião, nem sequer respeitei os mandamentos, visto que já cobicei muito as mulheres de meus semelhantes.
Mas isso é só um ínfimo exemplo de tudo de ruim que eu tenha contribuído para o mundo e para mim. Já me meti com agiotagem, prostituição, casa de jogos, já bati em mulheres, enfim. Trilhei o caminho que os cristãos diriam ser do inferno. Mas estou aqui. “Vivo” em sã consciência, e se o meu castigo divíno seja pagar essa penitência tendo como parceria eterna a minha voz sucumbida nesse vácuo que eu nem sei se existe, que seja assim. Acho que pode ser divertido. Eu adoro ser desafiado. Apesar de encarar isso com a maior naturalidade possível.
Golfinhos. Que tema mais ridículo, onde é que eu estava com a cabeça? Um jornalista combativo, com milhares de processos nas costas em decorrência de diversas denuncias da “politicagem” baderneira. Eu terminei exatamente, escrevendo um texto estúpido sobre a extinção de golfinhos. Deprimente. Mas isso é bom, que seja traçada uma linha cronológica da minha vida jornalistica, eu alcancei o ápice no começo, e fui degradando e perdendo o rumo de acordo com os anos que se passaram.
E caí pra nós. Não por ter deixado de ser competente, mas o jornalismo em sí, oriundo do esforço físico e do stress mental que era conseguir uma matéria, é hoje é disseminada via internet por mensagens de e-mail e spams. Resumindo: fiquei ultrapassado. As novas tecnologias me tornaram um jornalista obsoleto, e o que me restou foram as notícias do mundo agora. Como a extinção dos golfinhos, a morte da Dercy Gonçalves e outras coisas sem importância.
Agora mais uma vez, me vejo obrigado à viver de acordo com outras regras. Esse contexto que mudou de uma sala com dois ventiladores de teto, cheiro de cigarro e de papel quente, para um espaço vazio e branco, onde tudo que eu penso e divago fica escrito em uma parede também branca, como se fosse um histórico pós-morte. Sinto saudades das pessoas. Minha mãe, meu pai, meus filhos e minhas 3 mulheres. Eles foram o que de melhor a vida me rendeu. Sem hesitar.
Minha mãe era uma santa. A mulher que mais responsável que já existiu. Me ensinou tudo direito, com todos os pingos em seus respectivos “is”, mas eu, fiz questão de não levar nada à sério e cometer excessos de erros que me renderam expulsões de diversas escolas, de universidades, exonerações no trabalho e de minha própria casa. O meu pai tratava de tudo com mais rigor, nunca lhe faltou prudência, mas sempre atrelada à seu comportamento violento. Saí de casa quando ele bateu na minha mãe depois de uma bebedeira, e eu tive que quebrar seu nariz pra que aprendesse à respeitar as mulheres.
Talvez, se eu soubesse que fosse agredir uma mulher no futuro, tivesse batido nele apenas por ser minha mãe, sem usar de discursos demagógicos sobre direitos iguais entre homens e mulheres. Eu odeio remoer o passado, estou sentindo tristeza, e humilhação profunda, o que me remete ao arrependimento. Pode ser essa a questão. Lembrar das coisas, pensar sobre elas, e reagir. Simplesmente reagir, para que conste em algum bloco de notas quais as formatações de meu comportamento pós-morte. O que me deixa puto, é claro. Quero respostas.
Vou parar de pensar, não quero ninguém entrando no meu íntimo. Não quero que ninguém saiba nada sobre mim. Não quero ser o idiota monitorado por entidades cafajestes que sequer se pronunciam. Se eu parar de pensar o texto acaba, ninguém me analisa, e enfim, estou morto novamente. Pois bem, bem vindos ao meu enterro, e agora eu sou o anfitrião, bebida e petiscos por minha conta, agora é liberado falar mal de mim, afinal de contas é o que todo mundo faz, cuspam no morto, cuspam em mim, e salvem os golfinhos.
Vinicius Canova Pires
Felizmente minha morte não foi dolorosa, apenas me impressionou o fato de que em meu último resquício de consciência eu me desse conta de que o sangue jorrava de meus ouvidos e algumas outras cavidades em meu rosto. Acidente vascular cerebral. E não era pra menos, afinal de contas minha vida sempre foi regada à cigarros, uísque, e comida pesada. Claro que eu não me arrependo. Morrer cedo ou morrer tarde? Que diferença faz? O ponto vital é viver! E eu vivi! Dentro do jornalismo convivi com o mais exagerado puritanismo, e sei qual o destino: morrer com cento e poucos anos, e não ter feito nada que desse um pingo de prazer. Nisso eu não pequei, ao menos ao meu ver.
Ah! As pessoas com certeza querem saber da transição. Ah, a transição, ufa! Se você já fez o trajeto de Porto Velho à São Paulo de ônibus, é provável que ainda falte um bocado pra compreender a magnitude tediosa dessa empreitada. E nem sequer escolhemos! Já estou há algum tempo aqui, tempo suficiênte pra dizer que por enquanto não há nada demais. O que difere um pouco, é que já não existe mais a parte física. Sou apenas consciência, sózinho, com um bocado de espaço em branco para ser preenchido. Não sei se é uma missão, se Deus realmente existe, mas aqui não é tão divertido quanto lá na terra.
O que gosto daqui é que eu tenho acesso irrestrito à minha lembrança. Posso buscar tudo que eu já fiz, desde o momento de minha concepção (Pulei essa parte, realmente consegue ser mais tedioso do que o que vivo aqui, agora). Posso recordar minha infância, o primeiro cigarro, a primeira namorada, a primeira briga, a perda da virgindade, os valentões da escola, o meu primeiro e suado emprego. A dificuldade que era estudar, ler e trabalhar, tendo que harmoniosamente relacionar essas atividades. Aqui é o contrário do que pensei, achei que caíria no inferno, porque sim, eu acredito em Deus, mas nunca vivi de acordo com os princípios dogmáticos de qualquer religião, nem sequer respeitei os mandamentos, visto que já cobicei muito as mulheres de meus semelhantes.
Mas isso é só um ínfimo exemplo de tudo de ruim que eu tenha contribuído para o mundo e para mim. Já me meti com agiotagem, prostituição, casa de jogos, já bati em mulheres, enfim. Trilhei o caminho que os cristãos diriam ser do inferno. Mas estou aqui. “Vivo” em sã consciência, e se o meu castigo divíno seja pagar essa penitência tendo como parceria eterna a minha voz sucumbida nesse vácuo que eu nem sei se existe, que seja assim. Acho que pode ser divertido. Eu adoro ser desafiado. Apesar de encarar isso com a maior naturalidade possível.
Golfinhos. Que tema mais ridículo, onde é que eu estava com a cabeça? Um jornalista combativo, com milhares de processos nas costas em decorrência de diversas denuncias da “politicagem” baderneira. Eu terminei exatamente, escrevendo um texto estúpido sobre a extinção de golfinhos. Deprimente. Mas isso é bom, que seja traçada uma linha cronológica da minha vida jornalistica, eu alcancei o ápice no começo, e fui degradando e perdendo o rumo de acordo com os anos que se passaram.
E caí pra nós. Não por ter deixado de ser competente, mas o jornalismo em sí, oriundo do esforço físico e do stress mental que era conseguir uma matéria, é hoje é disseminada via internet por mensagens de e-mail e spams. Resumindo: fiquei ultrapassado. As novas tecnologias me tornaram um jornalista obsoleto, e o que me restou foram as notícias do mundo agora. Como a extinção dos golfinhos, a morte da Dercy Gonçalves e outras coisas sem importância.
Agora mais uma vez, me vejo obrigado à viver de acordo com outras regras. Esse contexto que mudou de uma sala com dois ventiladores de teto, cheiro de cigarro e de papel quente, para um espaço vazio e branco, onde tudo que eu penso e divago fica escrito em uma parede também branca, como se fosse um histórico pós-morte. Sinto saudades das pessoas. Minha mãe, meu pai, meus filhos e minhas 3 mulheres. Eles foram o que de melhor a vida me rendeu. Sem hesitar.
Minha mãe era uma santa. A mulher que mais responsável que já existiu. Me ensinou tudo direito, com todos os pingos em seus respectivos “is”, mas eu, fiz questão de não levar nada à sério e cometer excessos de erros que me renderam expulsões de diversas escolas, de universidades, exonerações no trabalho e de minha própria casa. O meu pai tratava de tudo com mais rigor, nunca lhe faltou prudência, mas sempre atrelada à seu comportamento violento. Saí de casa quando ele bateu na minha mãe depois de uma bebedeira, e eu tive que quebrar seu nariz pra que aprendesse à respeitar as mulheres.
Talvez, se eu soubesse que fosse agredir uma mulher no futuro, tivesse batido nele apenas por ser minha mãe, sem usar de discursos demagógicos sobre direitos iguais entre homens e mulheres. Eu odeio remoer o passado, estou sentindo tristeza, e humilhação profunda, o que me remete ao arrependimento. Pode ser essa a questão. Lembrar das coisas, pensar sobre elas, e reagir. Simplesmente reagir, para que conste em algum bloco de notas quais as formatações de meu comportamento pós-morte. O que me deixa puto, é claro. Quero respostas.
Vou parar de pensar, não quero ninguém entrando no meu íntimo. Não quero que ninguém saiba nada sobre mim. Não quero ser o idiota monitorado por entidades cafajestes que sequer se pronunciam. Se eu parar de pensar o texto acaba, ninguém me analisa, e enfim, estou morto novamente. Pois bem, bem vindos ao meu enterro, e agora eu sou o anfitrião, bebida e petiscos por minha conta, agora é liberado falar mal de mim, afinal de contas é o que todo mundo faz, cuspam no morto, cuspam em mim, e salvem os golfinhos.
Vinicius Canova Pires
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